Friday, December 5, 2008

“Chamo-me António Silva, não sou actor de cinema. Sou o engraxador da Praça da República!”


Enquanto o Sol bate na praça, enquanto corre a azáfama de mais um dia de gente atarefada de regresso a casa; de velhos, bancos e jogos de cartas; de sem-abrigo à procura de um cigarro e taxistas estacionados na berma; está António Silva a engraxar sapatos e a cantar: “E ao povo que passa mete muita graça este meu apregoar.”


Ao pé dele, apoiado na bengala de madeira castanha escura, o companheiro de tardes e de conversas nos intervalos entre um e outro cliente. “Vai uma engraxadela?”

A caixa que guarda os materiais revela os 66 anos de uso. O engraxador tem 80 anos, as mãos pintam-se com o preto da graxa desde os 14. São 18horas e é tempo de balanço. “Ganhei o gosto a esta profissão, que dizer, foi o que a vida me permitiu. Não gosto muito, mas tenho de gostar. Até porque a minha reforma é bastante baixa e isto ajuda-me a viver.”


António Silva faz parte da história da praça, fez-se nela moço e velho e é com ela e nela que se recorda de si. A vida exigiu-lhe uma profissão pela qual nunca foi apaixonado, mas é com orgulho que diz ter sido o “1º engraxador da sua falecida mãe”.


Longe vão os dias em que lhe pagavam 5 tostões por engraxar uns sapatos. Agora, por 1 euro, um homem de gravata azul-escura pousa o pé no apoio da caixa e lê o jornal enquanto o “não actor”, mas artista, lhe “puxa o lustre” ao sapato. Conversam pouco.


“Hoje 5 tostões não dão para nada, nem para um rebuçado. Engraxei milhares de sapatos a cinco tostões, depois foi subindo para 8, 10, 12, 15 e por aí fora. Ganho sempre para mandar tocar um cego.”

O engraxador de sapatos, que também faz “consertos, ponho meias solas, bicos...tudo!”, é, ainda, o homem dos sete ofícios: Tive diversos empregos, desde sapateiro, em que ganhava 7 tostões, até trabalhar numa casa de molduras a ganhar 5 escudos, depois numa fábrica de fechaduras e muitos mais.” Engraxar sapatos nunca foi suficiente para sobreviver... Sempre foi essencial para viver: “Se não viesse para aqui já tinha morrido. Isto ajuda-me a passar o tempo.”


Ao som do vai e vem da escova “faz contas à vida”, viaja entre sonhos e pensamentos, observa e absorve a evolução do mundo através da praça. Já por lá passou um sem fim de sapatos, à razão de dois por pessoa, a caixa do engraxador guarda a recordação de cada um deles. Mas guarda também os dias em que a entrada do quartel se enchia de gente para almoçar. “ A recordação que tenho é que a miséria era tanta que vínhamos aqui à Praça da República buscar rancho para comer. Estava cá a infantaria 6, vínhamos aos 40 rapazes e raparigas.”


Os olhos azuis de António Silva inundaram-se de lágrimas e o tempo concentrou-se nele, assim como as imagens daquela mesma praça animada de outras cores e de outras gentes. Permaneceu em silêncio. Voltou o olhar para os sapatos arranjados e pousados na sebe do jardim. Contemplou-se no seu trabalho e regressou. “Hoje vivo melhor do que antigamente, antes quero o mal de agora do que o bem de antigamente.”


Hoje, abriga-o um casaco de ganga gasto sobre uma camisa e duas camisolas desbotadas, e aguarda-o uma pequena casa vazia e solitária ali perto. No sorriso sereno e contido revela o que lhe resta de felicidade. “Olhe eu sou feliz, mas podia ser muito mais. A minha tristeza chegou há 17 anos quando morreu a minha esposa.”

Martelou com as mãos firmes e experientes, ser engraxador exige destreza manual. Mas com o avançar dos anos dissipou-se a destreza das principais artérias da cidade. E o Porto, cidade de pequenos apontamentos históricos e tradicionais, perdeu graxa e algum brilho. Desapareceu o engraxador da Cordoaria, do Marquês, da Boavista. Ainda há um nos Aliados.


“Aqui neste diâmetro, desde a praça da liberdade até à igreja da Lapa estávamos 14. Estão todos à minha espera, morreram todos. Eu sou o número um, o chefe deles.”

Resta a obstinação de um capitão que se recusa a abandonar o seu navio ao tumulto das vagas, que endireita a boina orgulhosa frente à lente da câmara fotográfica.


Não é fácil ser o chefe, porque não é fácil resistir à mudança. Mas as mãos são as mesmas e o homem está só mais velho. “A minha política é trabalhar, comer e beber.”

Não é avesso à modernidade, gostava, antes, de ser incluído nela. Em 2007, a Lusa noticiou um projecto de revitalização da profissão: “ler ou navegar na internet enquanto os sapatos são engraxados”. Lançada nas Caldas da Rainha, no “Primeiro Encontro Nacional de Engraxadores, para não deixar morrer uma profissão em vias de extinção”, que o “nosso” engraxador nem sabia que existia. A iniciativa pretendia criar um quiosque interactivo de engraxadores do século XXI onde se poderia localizar um posto para as pessoas deixarem e levarem literatura, obterem informação turística, poderem ler a imprensa ou consultar a internet enquanto engraxavam os sapatos.


António Silva gostava de um quiosque assim e gostava que a “rapaziada nova” não teimasse em usar sapatilhas, as mesmas que usa o seu companheiro de tardes, amigo, de óculos grandes, camisola azul lavada, ar atento e informado, de jornal em punho e ouvido nas respostas do engraxador, que lhe retribui a atenção enquanto ajeita um sapato preto.


Não se lembra de algum dia ter engraxado os sapatos a uma figura importante, “engraxava a qualquer um, alguns nem pagavam. Apanhavam os sapatos engraxados e dinheiro? Punham-se a andar. E eu não ía correr atrás deles, para quê? Não tinham dinheiro, como é que iam pagar? Iam presos? Oh! Lá os deixava ir...” Sorriu, ao mesmo tempo pegou num saco de plástico e guardou um dos pares de sapatos secos na sebe.


Depois, lembrou-se das pessoas mais abastadas e importantes que conheceu. Moraram naquela casa ardida, ao seu lado direito. “Aquela casa era de um casal riquíssimo, os donos das “Águas Luso”. Morreram, ficou para o filho que a alugou. Agora ía abrir lá uma clínica, mas um dia de madrugada deitaram-lhe fogo e acabou tudo.” Aos olhos do engraxador a casa renasce cheia de luz e movimento, de vida e de graça, aos nossos sucumbe sob o negro da fuligem, cinge-se a um aglomerado de paredes sujas e janelas “desenvidraçadas”, onde dormitam um ou dois toxicodependentes. Abandonados.


A voz fraqueja-lhe de repente e António Silva pergunta-se: “quem precisa de um engraxador?” Já se anunciam aparelhos automáticos, que engraxam rápida e eficazmente. Antes, os grandes senhores gostavam de andar polidos e precisavam de alguém que não se importasse de sujar as mãos para lhes dar brilho e alento na caminhada. Antes, António tinha uma pequena fila de sapatos para engraxar. Agora, “alguns têm vergonha de vir aqui, ao velho engraxador.”


Mas ali, na Praça da República, sentado naquele pedaço de passeio ao Sol, não está somente o velho engraxador e a sua caixa mas também a luz dos olhos perspicazes e sábios de um contador de estórias. António Silva vê passar todos os tipos de pessoas, adivinha-lhes os jeitos e o que lhes vai na alma, descodifica-as à sua maneira, não as julga. Diz não perceber nada de política, não conhecer muitos escritores, actores ou músicos. “Trabalhei sempre aqui na cidade do Porto, aliás sempre aqui na Praça da República, mas conheço o suficiente da vida e do mundo.” E conhece.

Escurece, a praça à noite não lhe pertence. Acomoda com vagar as ferramentas na caixa, enquanto se despede com o olhar. Caminha em direcção a casa. Fita os próprios pés, e os sapatos mal engraxados. Mas ele não é actor de cinema, é apenas o engraxador da Praça da República.