Wednesday, October 22, 2008

Nos olhos...as estrelas...

Sentada nos cartões que alguém reservou para os gatos, com as pernas tapadas até aos tornozelos, ela molhava-se...enquanto chovia. Pés de unhas negras, enormes; pés calejados, descalços, molhados. Chamou mais a minha atenção por ser aquela mulher e ter aquele olhar meigo e de loucura; por não pertencer ali mas ter o direito de pertencer ao mundo.


- Obrigada menina. Só estou aqui a fazer horas, à espera que abra o albergue, que agora não me deixam ir para lá.

- Ah....está bem...

- É é...às seis já abrem. São as cinco, agora, não é menina?

- Sim, são as 5h...

- Obrigada.


(avancei)


E gritou-me...

- Obrigada minha menina, obrigada.


Tem cabelo branco, muito sujo e apertado. Tem um lenço preto tingido de manchas e tem aquela praça que se faz deserta, em frente à faculdade. No dia seguinte, quando lhe demos o pão e o leite, chorou. Mas já não chovia.


- Onde dorme? Tem sítio para ficar?

- Durmo numa casa ali em baixo. Já me abrem a porta. Não digam a ninguém meninas.


Não quer camisolas vermelhas, azuis ou amarelas. Quer a cor mais próxima do luto que carrega.


- Esta camisola vou levá-la amanhã à igreja, porque cheira bem.


E agarrou-se a ela com carinho. Foi como se o Sol abrisse por entre as nuvens agitado pela luz daquele sorriso, foi como se o mundo fosse de cores suaves e sensações quentes. Foi como se fosse perfeito...

Gosto dela, velhinha deambulante.

Mas não gosto de imaginá-la sozinha na praça, no lugar dos gatos...Pelo menos não chove e guardadas nos olhos fechados tem as estrelas...

Sunday, October 12, 2008

O que há em mim é sobretudo cansaço



O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço...

Álvaro de Campos

Wednesday, October 8, 2008

Regina Spektor

Vale a pena descobrir...a voz e o piano.


Parte I : Perdi-me no cinzento e reparei...

De camisa de noite lilás, aquela sensual, de seda justa ao corpo...saiu até ao alpendre. Os pés descalços sentiram o frio da manhã, o resto sentiu o sol que nascia devagarinho e a segunda-feira soou a sábado tardio e preguiçoso. Sentiu-lhe o toque, suave como a camisa, quente como o sol...As tábuas do alpendre rangeram, naquele som indescritível de tábuas calcadas a dois...num só. Quando o sol é assim e o céu é azul, quando até se vêem borboletas brancas e girassóis amarelos encantados, o mundo parece perfeito...Mas ele foi-se e o tempo deixou-a perdida...

Há muito que não se sentia assim, mas em frente da secretária de madeira escura viu-se obrigada a mudar de sentido. Cabelo apanhado, ar impenetrável e confiante, fato cinzento escuro de saia justa por baixo do joelho, passo firme em cima dos saltos finos de uns sapatos únicos, brilhantes; estão entre os seus preferidos na prateleira do meio do armário onde guarda mais de 100...Multipliquem-nos por muitos dias, muitas estórias, muitos andares. Haverá, portanto, uns sapatos nervosos, outros ansiosos, orgulhosos, entusiasmados, cansados, irrequietos e calmos, tristes e felizes. Não há sapatos no armário que lhe recordem aquela manhã, sentiu-a mais à flor da pele por isso, e à flor da pele tem hoje a vontade de descalçar novamente os sapatos. Mas tem a reunião do meio dia em jeito de almoço com o resto da equipa da empresa e tem uma nova manhã, de botas castanhas...

Hum...nem imaginas o que vou fazer com o meu casaco azul escuro e apertado na cinta, cabelo apanhado e sexy, botas altas castanhas...São 10h30 da manhã, vou em direcção à foz. E isto agrada-me no começo do dia.

Deixa-me, antes, aproveitar para te contar que parei num Banco para depositar cheques, nos aliados, e deu-me uma súbita vontade de percorrê-los pelo centro, a pé. Já olhaste os aliados de baixo? Já encheste os olhos, cá do fundo em direcção à Câmara? Já não os olhava assim há algum tempo. Perdi-me no cinzento e reparei. Sozinho num banco, um livro de capa branca e marcador prateado. Prendeu-me a ele e trouxe-o comigo. Mas depois conto-te o resto, já estou atrasada...

Vou seduzi-lo, a estratégia é entrar na pastelaria, pedir um daqueles croissants gulosos e juntar-lhe aquele meu ar deliciado, que sei que seduz. E ele já está a olhar para mim mais derretido que a manteiga. Caminho escorregadio, para ele. Dentro de poucos segundos vou saber tudo o que quero. Os meus olhos castanhos de mel estão agarrados aos verdes dele. Falo descontraidamente enquanto ele tenta acompanhar o meu ritmo alucinante...foi o que ele disse que eu tinha. Acabei de dar uma daquelas gargalhadas...Ritmo alucinante? Gosto de acordar cedo e ter muita coisa para fazer, de me deitar tarde a pensar na agitação do dia seguinte, de correr de um lado para o outro, de ter meia hora para almoçar, de chegar em cima da hora mas a tempo...talvez ligeiramente alucinante...

E já está. Acabou de me revelar tudo. Um beijo e um olhar de despedida, daqueles que se arrastam (nele) e deixam vontade de mais. A conquista faz-se devagar e é tanto mais forte quanto mais forte é a vontade do outro em ser conquistado. Ele tem pressa, eu tenho vagar. Funciona assim, porque eu quero.

- Luísa, posso ligar-te mais tarde?
(Sorri...)