Friday, December 7, 2007

No Cabo do Mundo, ao sabor da pena de Laura Costa...(Parte III)


A Laura tem no seu livro várias descrições, os cheiros, as cores. É muito observadora?

Sim, é interessante. Não é muito fácil, é preciso muita paixão pelo que se vê e pelo que se escreve para poder retratar e tentar que as outras pessoas percebam a que é que cheira, o que é que se sente, e tentar que isso saia fora do papel. Acho que é um dom, acho que não se aprende, é mesmo um dom da própria pessoa que escreve juntar no papel aquilo que sente, que vê e aquilo que vai capturando para depois conseguir que saia do papel. E eu tento explorar este dom, porque é aquilo que eu gosto de escrever e também de ler, quando leio também gosto de sentir. Por exemplo, a Laura Esquivel, é uma chilena que eu leio muito e tem um livro que eu adorei e que já li diversas vezes. Ela tem as receitas de uma tia e o livro é a volta disso, está relacionado com as receitas e eu consigo cheirar o alho, consigo estar a ler e a sentir o cheiro daquela cozinha e daqueles vapores, e é muito interessante, é muito bom. E é isso que eu gosto que o leitor sinta, aquilo que eu estou a sentir na altura em que estou a escrever.

Eu sou muito observadora, hoje nem tanto, uma pessoa tem outro tipo de vivências e começa a ver as coisas de forma diferente, mas as crianças têm muita tendência de querer levar tudo ao mesmo tempo, sobretudo quando gostam, e eu tinha medo de me esquecer, e entao escrevia para não me esquecer...Gosto mesmo de guardar tudo.

A sua paixão pela fotografia tem a ver com a sua necessidade de guardar tudo?

A fotografia surge porque eu tenho muita pena de não registar alguns momentos. Uma coisa é escrever outra coisa é ter uma imagem. Por exemplo, hoje fui almoçar ao Palácio de Cristal e como estamos numa época muito bonita de Outono em que as folhas são de todas as cores fiquei com muita pena de não ter levado a câmara, e principalmente porque é digital e depois brinco com ela, como toda a gente brinca com uma câmara digital. Fiquei mesmo com muita pena, mas vou pegar nela e levá-la, porque há coisas que eu acho que não se deviam perder, há fotografias, imagens que falam por si e acho que não se deviam mesmo perder. Na fotografia gosto de captar os cantinhos e os recantinhos, gosto de tirar rostos e pormenores, pormenores que passam despercebidos a qualquer pessoa.

E em relação à pintura. O que procura transmitir quando pinta?

A pintura é mais para relaxar, é..Quando eu estou a pintar não penso em nada, quando estou a escrever penso em muita coisa. Quando estou a pintar estou num mundo completamente diferente, as sensações que tenho são completamente diferentes. Todas as exposições em que me pediram para entrar eu recusei, fiz uma exposição colectiva e nunca mais fiz nenhuma. Porque as pinturas que eu faço normalmente, faço para o sítio onde as quero colocar e neste momento não sou capaz de imaginar, sequer, tirar um quadro e mostrá-lo a A B ou C. Enquanto que o livro tenho todo o orgulho em que as pessoas o leiam e apreciem, com o quadro não sinto o mesmo à vontade, porque é um momento de relaxamento que eu tenho. Pego numa tela e faço qualquer coisa,é diferente. Às vezes os quadros saem esquesitos, porque estou mais nervosa ou chateada. É mais isso, é uma forma de retratar uma emoção diferente.

Tem também um blogue, “Vendo passados”, onde tem vários textos e sobretudo poemas. E lá define-se como uma informaníaca e também maníaca pelo prazer que a vida lhe proporciona...

Maníaca pela vida, sim. Toda a gente que gosta de viver é. Sou maníaca pela vida, sedenta da vida, sou uma pessoa que gosta muito de viver, gosto muito do que faço, apesar de ter os aborrecimentos que toda a gente tem. Mas o prazer que a vida nos proporciona é único e devemos aproveitá-lo bem. E estamos sempre a tempo de aproveitar todos os bocadinos da vida.

Um dos poemas que está no blogue é “O Homem que tinha asas de Condor”, que aliás faz parte do seu livro. Ao longo da sua vida tem sido fácil soltar-se das amarras, voar sozinha e devolver as asas ao condor?

Eu vivi muito revoltada, apesar de ser a mais nova e os meus pais já terem uma certa idade e serem mais permissivos, mas eu queria sempre mais, mais em termos de liberdade, achava que ninguém me iria impedir de fazer as coisas. E foi por isso que eu com vinte anos decidi comprar um apartamento e sair de casa. Comecei a trabalhar muito cedo, entrei na faculdade e ao mesmo tempo comecei a trabalhar. Hoje em dia os miúdos não sentem tanto isso, porque têm muito mais facilidade em viver as coisas e não têm vontade de sair de ao pé dos pais. Eu sentia muitas amarras porque me sentia muito limitada, e enquanto havia colegas minhas e até mesmo os meus irmãos muito mais acomodados à situação, eu sempre fui muito revoltada e muito diferente. Queria muito desatar essas amarras, porque eu não tinha nada a ver com aquilo e queria ser uma pessoa liberta de preconceitos, de tabus, como sou ainda hoje. Essas amarras siginificam a forma como me obrigavam a estar atada e não era só fisicamente, era a outros níveis. Eu queria voar sempre mais alto, mostrar que tinha capacidades, porque é engraçado, eu ponho-me a pensar como gostava que os meus dias fossem diferentes uns dos outros. Nós damos por ela a viver os dias muito iguais e isso é uma coisa que me dói e eu tento sempre que as coisas não sejam assim, tento sempre dar um gosto diferente ao dia, acordar com uma ideia nova ou para o livro ou para uma pintura. Porque estou todo o dia ligada a um computador e estou a programar, a fazer análise ou outro trabalho que pode ser criativo em termos informáticos, mas que não é a minha criatividade pessoal. Fora do trabalho ter sempre uma ideia nova, é a tal forma que tenho de estar sempre a ver e a pensar a toda a hora. É cansativo, mas é bom. E é o que faz com que os meus dias sejam diferentes e melhores.

Como referiu, está a escrever um novo livro. Quer desvendá-lo um pouco?

Ainda é um bocadinho prematuro, porque eu tenho receio de estar a falar e depois as coisas darem outra volta. Mas o livro passa por uma homenagem a uma criança. Eu fui escuteira muitos anos e esse miúdo veio para o agrupamento com seis ou sete anos e era uma criança autista. Naquela época ninguém estava muito receptiva a aceitar crianças diferentes. Nem sabiam sequer como lidar com isso, nem o que era um autista, era só mais um deficiente. Ele chegou, integrou-se muito bem no agrupamento, eu fui uma das monitoras dele. Agora tem 30 anos e continua lá, e a mãe acha que o miúdo evoluiu muito, de uma forma que ela não estava à espera, porque ele nunca andou em colégios especiais nem nada parecido e os escuteiros deram-lhe um grande convívio. Ele ainda hoje se lembra de pessoas que já não vê há cinco, seis anos e sabe o nome delas. Conhece toda a gente do agrupamento e sente-se muito feliz lá e eu sempre gostei muito dele e sempre o entendi muito bem. Então o livro é mais ou menos uma homenagem a ele, aliás o título do livro é um nome próprio, que não é o dele, mas é o da criança que no livro é autista. Não estou a fazer muita pesquisa nem muita investigaçao, porque acho que isso acaba por ser muito maçudo e este, tal como o anterior, é também um livro de emoções. Tem, ainda, uma vertente policial porque vai acontecer qualquer coisa com essa criança e, portanto, o objectivo do livro não é chegar a li e descrever o que é o autismo, não. É mais mostar a capacidade de um autista perante a sociedade e mostrar que na realidade um autista pode ser uma pessoa com muito valor, muito válida. É um livro muito diferente que me está a dar bastante trabalho. Não lhe consigo pegar como peguei no primeiro, em que eram umas emoções atrás das outras. Este requer um tempo específico, que eu tenha um trabalho muito mais árduo em relação ao tempo, ao espaço. Mas está a dar-me muito gozo.

Não posso dizer que esteja numa fase já muito adiantada, não tenho a tal estrutura, o tal esqueleto que gostava de ter. O livro ainda vai levar muitas voltas...

Actualmente exerce uma activiade profissional e escreve. Um dia gostava de se tornar escritora a tempo inteiro?

Sim, se me reformasse...E muitas vezes eu digo isso, aliás eu já tenho 26 anos de casa e queria reformar-me com saúde, claro, e com uma capacidade semelhante à que tenho agora para poder usar o tempo da forma que eu mais gosto, que é a escrever e a pintar, sem dúvida. Gostava não de me tornar uma escritora, porque eu não me considero uma, sou antes alguém que teve coragem para escrever e publicar um livro. Considero-me uma pessoa com coragem por ter mandado cá para fora uma coisa que escrevi para mim, sou mais uma aventureira. Mas se realmente tivesse tempo, investia na escrita.

Num dos seus poemas diz.: “Estupidamente inteligente.../É assim que eu sou/Porque recupero tudo o que levas de mim.../Sempre que eu quero.” O que procura recuperar no tempo?

Por exemplo, agora tenho alturas em que me refugio na biblioteca Almeida Garret e outro dia pude trazer quatro livros. Peguei em quatro livros que achei que podia gostar e vim para a rua com um sorriso estranho porque achei que tinha outra vez cinco anos e que tinha ido à Gulbenkian, depois acabei por constatar que já os tinha lido. Mas tive o prazer “gratuito” de há quarenta anos atrás...

A partir de uma certa idade há um certo medo de não voltar a viver alguns momentos, daqueles que nos arrepiam, e o recuperar desses momentos e emoções vai fazer parte da minha vida sempre. Embora não possa recuperar sensações que tinha aos 18 anos quando via uma pessoa por quem estava apaixonada sentada numa esquina do café e ficava muito corada. São sensações únicas, que fazem o coração bater mais forte. Hoje, chegar a casa e escrever três páginas e depois ler, faz-me corar e bater o coração. Eu não sou muito presa ao passado, já passou...e o presente ja quase não é...mas foi do passado que trouxe os ensinamentos. Recuperar emoções é importante para me sentir viva.

E, agora em relação ao futuro, quais são os seus projectos?

Não me identifico muito com uma compilação de textos ou poemas, como me propôs um amigo escritor, que leu um dos meus poemas na apresentação da 2ºediçao do meu livro na Bertrand do Dolce Vita. Embora não esteja fora de questão. Só que é mais ou menos como eu voltar aos pedacinhosde mim e juntá-los num livro, e depois eu ía passar por aquela situaçao do ser demasiado íntimo e não querer publicar. Esses textos, essa poesia, escrevo-os mais para começar o meu dia, normalmente escrevo-os de manhã. Os livros são uma obra em que invisto, quero que tenham princípio meio e fim, que transmitam uma mensagem a muitas pessoas. É um objectivo diferente. Para já, acho que o meu futuro passa por um livro infantil, que tenha ilustrações minhas também. É um projecto muito arrojado, porque é muito difícil escrever um livro infantil. Os miúdos são os principais críticos e não dizem que gostam sem gostar, é um público mais exigente. Mas é um projecto que gostava de concretizar mais para a frente. Quando acabar este livro talvez volte a usar o “meu” menino autista.


Parte I
Parte II

No Cabo do Mundo, ao sabor da pena de Laura Costa...(Parte II)


Laura Costa nasceu em Valongo em 1962, onde reside actualmente.

Frequentou o curso de Engenharia Electroténica, no ISEP.

Ingressou em 1982 numa instituição bancária, onde trabalha actualmente como técnica de informática.

É casada e tem dois filhos de 18 e 12 anos.


As suas preferências reflectem-se um pouco na sua escrita sensitiva. É uma escritora de emoções?

Sim, acho que a minha escrita é mesmo assim, deixo-me levar muito pelo que estou a sentir no momento e a maior parte das vezes não releio o que está para trás, quer dizer, releio numa de correcção mínima, mas não faço grandes alterações. E uma das coisas que me têm dito acerca do livro é que parece que eu estou a falar, e de facto isso torna a escrita bastante mais realista. Na realidade, é mesmo assim que eu sou e é esse o tipo de escrita que tenho. Estou a escrever outro livro agora, que não tem nada a ver uma coisa com a outra, é um enredo completamente diferente. O primeiro, apesar de não ser biografia, é mais relacionado com a minha vivência pessoal, e este é uma história que não tem rigorosamente nada a ver comigo. Mas dou por mim a ler, às vezes, algumas coisas que escrevo e a achar que é o tipo de escrita que eu tenho, não é que repita as palavras mas é a forma das frases e a própria construção das frase, a pontuação, muitas vezes exagero nas retecicências, nos pontos de exclamação, dou muito enfâse à frase que escrevo, e transpareço muitas emoções ao leitor, isso é bom. Quando um escritor, e não estou a falar em “lamechice”, consegue transmitir ao leitor uma emoção que se pode traduzir num sorriso, numa lágrima, em qualquer tipo de reacção, acho que já valeu a pena.

Na apresentação do seu livro, “Cabo do Mundo”, em Chaves, disse que «este livro foi escrito “ao sabor da pena”, sem qualquer tipo de estudo prévio e que as personagens foram nascendo à medida que o enredo as ia pedindo». Alguns escritores dizem ser “comandados pelas personagens”. É isso que lhe acontece?

Exactamente, aliás o livro não teve qualquer tipo de esqueleto. Às vezes as pessoas pensam: “bem vou escrever um livro e vai começar assim, vai ter um meio assim e acabar assim”. Mas depois é um bocadinho difícil concretizá-lo, porque há coisas que nos saem fora do controlo. Eu, por acaso, não pensei nada dessa forma. Este livro começou com uma conversa entre duas amigas e é assim que ele começa. A partir daí desenrolou-se sozinho, quando dei por ela estavam a aparecer as personagens com nome e tudo. E havia alturas em que até tinha receio que a história me fugisse das mãos, porque era mesmo o próprio livro que se impunha. E acabou por não acontecer nada como eu estava à espera. Há uma altura do livro em que parece que ele vai acabar e a maioria das pessoas que lê está à espera disso, e acha que acabaria bem naquela altura, até lamentam que ele tenha tido o final que teve. Mas eu tive de continuar a história, ele não acabou ali porque nao podia acabar ali, eu já não tinha grande controlo sobre isso, nem foi a minha própria vontade, acho que era a própria personagem Luísa que pedia que ele continuasse e acabasse da forma como acabou. E no final do livro, e eu só escrevi um,não sei como me vou sentir quando acabar este, respirei de alivio porque tinha acabado e realmente tinha conseguido fazer uma obra com que tinha sonhado toda a vida, porque sempre foi um sonho para mim escrever uma coisa e publicar, mas fiquei muito triste, com muita pena ao mesmo tempo.

No entanto, apesar desse sonho e vontade de publicar, guardou-o na gaveta muito tempo, durante quatro anos. Porqûe?

Na verdade, tem uma certa lógica. Eu escrevi toda a vida sem nunca mostrar o que escrevia, achava que eram coisas demasiado íntimas. Neste primeiro livro foi difícil estar isenta da minha própria realidade, porque muito do estado de espírito que está no livro, apesar de a história não ter directamente a ver com a minha vida pessoal, é muito a minha emoção e a minha forma de ver as coisas, as opiniões, a maneira de lidar com os assuntos, a minha forma de ver o mundo. Isso tudo é meu e é tão meu que eu tinha receio de me expôr, de me desnudar dessa forma. Por isso, guardei-o. Eu tinha escrito para mim, para os meus filhos, para o meu marido, tinha escrito para nós lermos em casa, não era uma coisa que eu achasse que as pessoas estivessem interessadas em ler. Só que depois, no final, achei que era uma história bonita e cá em casa disseram “ai por que não publicas mãe?”, mas eu achava que não ía ter hipótese. Até que um dia escrevi para a Papiro Editora. Estava a ler o jornal e vi um anúncio a dizer que precisavam de novos escritores, era uma editora muito recente, muito nova e apostava em novos autores. Então, antes de ir de férias, contactei com eles. Quando regressei tinha uma carta deles a pedir para ir lá entregar a obra, que estavam interessados em ler e a partir daí a pessoa que estava à frente da editora e que leu disse logo que sim, que a obra tinha pés para andar e que era uma pena deixá-la ficar. Foi assim que começou. Foi um percurso giro, foi bom, porque não estava à espera e a surpresa foi muito agradável. Não investi como muitas pessoas, que dizem “ai vou pedir àquela editora ou levar ali e acolá”, nem tive tempo de fazer isso, porque correu bem da primeira vez.

Tem algum refúgio especial, uma espécie de “cabo do mundo” onde se encontre a sós com a sua escrita?

O mar é muito importante, tenho muita pena de não morar perto do mar, acho que a minha vida fazia muito mais sentido se morasse, se o pudesse visitar, não no Verão, apesar de ir à praia com a família. Eu gosto do mar de Inverno, da onda batida, mesmo fria na praia, isso gosto...e de estar sozinha, que é coisa que não acontece nos meses de praia. E também tenho algumas experiências antigas, ultrapassei certas situações complicadas da minha vida, precisamente porque me refugiei na praia, e caminhava durante horas. Fiquei com uma ligação muito forte ao mar, esse cheiro do mar que me faz tanta falta e às vezes só consigo ao fim-de-semana. E então grande parte do livro foi escrito numa fase em que eu tinha mais disponibilidade de tempo, e passava os fins-de-semana ou os sábados à tarde ou de manhã na praia. Ficava no carro e escrevia, porque achava que ali tinha muito mais inspiração, e grande parte do livro foi mesmo escrito no Cabo do Mundo,uma praia. Por isso é que e chama “Cabo do Mundo”.

Uma das personagens do seu livro, “Cabo do Mundo”, xavier, diz: “Quando a vontade de escrever me vem do fundo da alma, solto-me completamente e as palavras surgem, não do nada mas de dentro de mim e, sinceramente, chego a espantar-me com as revoluções que surgem no papel, sem eu ter conhecimento da sua existência.” Também é assim que acontece consigo?

Sim, de certa forma eu posso dizer que há muita coisa que “me” aparece no papel, e eu acho que basta escrever uma única palavra para relacionar tanta coisa com ela que as frases aparecem, assim, em catadupa. É engraçado porque às vezes ponho-me a pensar, e um “talvez”, um “nunca”, “até amanhã”, um “e se fosse agora” é suficiente para escrever um texto de não sei quantas linhas sem antes ter pensado em nada do que ía escrever. Isso faz parte da magia das palavras, as palavras puxam-se umas às outras e têm simbologias completamente diferentes, mas no fundo são muito próximas e eu jogo com elas, pego numa palavra e surgem-me não sei quantas que posso relacionar com aquela, depois o resto vem...É um bocadinho assim, posso dizer que sim. Há sempre coisas que se revelam e com as quais não estava a contar.



Parte I
Parte III

No Cabo do Mundo, ao sabor da pena de Laura Costa... (Parte I)


Refugiou-se no Cabo do Mundo para escrever o seu primeiro livro e por isso deu-lhe esse nome. Apaixonada também pela fotografia e pela pintura, Laura Costa gosta de observar e “guardar” o mundo. É “maníaca pela vida” e desde menina que escreve, porque tinha medo de se esquecer das suas pequenas histórias.

Escritora de emoções aventura-se, agora, na escrita de um segundo livro, sobre um menino autista.

Se lhe pedir para recuar no tempo, regressar ao seu passado e trazer de lá algumas das suas histórias, o que traria para contar?

Toda a gente tem histórias do passado, algumas delas ficam mais na memória do que outras. Mas eu não sou uma pessoa com muitas histórias, acho que sou uma pessoa com mais imaginação do que histórias, talvez porque antigamente as coisas aconteciam de maneira muito diferente. Os dias não eram como os de hoje, era tudo muito mais natural, nós viviamos muito na rua uns com os outros, tínhamos as brincadeiras de rua, íamos da escola para casa e nunca estávamos em casa, íamos sempre para a rua. Era muito diferente, hoje em dia os miúdos ficam em casa na internet ou assim. Mas tenho algumas histórias, aliás algumas delas passei-as para o papel, na altura, porque tinha medo de me esquecer, achava-as engraçadas e tinha mesmo medo de me esquecer. Foi precisamente por causa do acumular dessas histórias que me lembrei de escrever o que escrevi. Achava que era um desperdício ter tantas folhas, e não é que o livro seja uma compilação das histórias. Na realidade, é o fruto do meu insvestimento na escrita. Eu tenho uma série de coisas guardadas que nem sei se darão um livro, são memórias minhas e acho que nao tem grande sentido estar a publicá-las. Mas as minhas histórias para mim eram importantes porque eu fazia questão de as passar para o papel. Dá-me muito gozo olhar para elas e reviver exactamente o que aconteceu, embora não sejam assim tantas.

Então desde criança que escreve...Teve alguma influência especial, alguém que a motivasse para a escrita?

Não, eu acho que era mesmo a preocupação de me esquecer das coisas. Eu comecei a ler muito cedo, sou a mais nova de sete irmãos e quando nós éramos miúdos não havia dinheiro para comprar livros. Então nós tínhamos a biblioteca da Gulbenkian e todos os dias eu tinha oportunidade de ir buscar seis livros, os meus irmãos também eram sócios e eu ía com eles. Com cinco anos arranjei maneira de o senhor me deixar trazer os livros, poque eu só podia ser sócia a partir dos seis. E foi assim que comecei a aprender a ler. Lembro-me perfeitamente dos livros onde aprendi a ler, que eram os livros do “Pequenu”, mais tarde comprei a colecção toda, na esperança de que os meus filhos achassem piada, não acharam piada nenhuma. E, entretanto, tenho-os ali, até acho engraçado quando às vezes vêm pessoas cá a casa, do meu tempo, e ficam muito admiradas ao verem os livros, porque pensavam que tinham desaparecido.

A partir do momento em que se investe tanto na leitura, desde muito cedo,e eu estive sempre a ler mais do que um livro ao mesmo tempo, tenho 45 anos, é só fazer as contas, a vontade de escrever vem por inerência, é mesmo uma vontade. Porque ao ler tanto tempo e tantos anos as palavras acumulam-se dentro de nós, e acha-se que se consegue pegar nelas e transformá-las segundo a nossa vivência, é engraçado. Mas sempre tive muita vontade de escrever, sempre escrevi poesias quando era pequenina, coisas a que hoje até acho piada, não têm nada de especial, eram os meus desabafos.

E quais são os seus autores de referência, as suas afinidades literárias?

Eu leio muito diversificado, leio muito qualquer coisa. Estou a ler um livro mas também leio uma revista, leio tudo o que me aparece à frente e sempre fui assim. Revistas, jornais, livros, tudo o que estiver eu tenho de ler, seja bom ou mau, porque também gosto de ler o que é mau. Autores portugueses, além dos clássicos que fui obrigada a ler, e não tenho grandes recordações deles, porque é complicado gostar de algo que nos obrigam...Não sou muito de autores portugueses, sou mais de autores latinos, latino-americanos, chilenos, gosto muito dos espanhóis, argentinos. Portugueses posso falar do que tenho lido, por exemplo, o Equador, de Miguel Sousa Tavares, gostei muito. É um dos livros que eu não me importo nada de reler qualquer dia. Não gosto muito do José Rodrigues dos Santos, acho que ele não tem grande originalidade naquilo que escreve, baseia-se bastante naquilo que está na moda e isso faz-me alguma confusão. Depois é um escritor muito denso, eu gosto de pegar num livro e ter vontade de o acabar, e os livros dele são muito parecidos com dicionários. Fujo de livros com demasiada informação, porque quando quiser informação vou procurá-la, acho que é uma informação injectada e não gosto. Gosto de um livro com um enredo e uma história com os quais me identifique e que me traga algo de novo, que não me faça perder o fio à meada, porque depois é muito complicado para mim voltar. Saramago também não. É engraçado que eu não estou a dizer aquilo que gosto mas antes o que não gosto. Gosto do Ballester, de Sepúlveda, gosto de Pedro Juan Gutiérrez, é um dos meus preferidos. Ele é um jornalista cubano que retrata Havana como ela é, com todas as cores e cheiros. Gosto desses livros, mesmo que pareçam grotescos, mas que são muito reais e que me fazem viver aquilo tudo com muita intensidade. Neste momento, em cima da minha mesinha de cabeceira estão mais ou menos 10 livros, um deles é de Lobo Antunes, que ainda não comecei a ler. Estou com algum receio, porque nunca li nada dele.

Parte II
Parte III

O Sexo e a Cidade

À noite, nas ruas de Bragança, não se vêem prostitutas velhas, exageradamente maquilhadas, com cabelos brancos mal pintados e botas de cano alto vermelhas. Mas, dizem as más línguas que é em Bragança que elas moram.

Desde o tão badalado caso “Mães de Bragança”, trazido a público pela revista Time, a cidade nunca mais se livrou da fama, mas continua sem o proveito.

Se existem casas de alterne ilegais? Sim, existem. Tal como existem na grande maioria das cidades do país. Esta é a realidade em que vivemos e os homens do interior norte são iguais aos homens do litoral sul.

As mães de Bragança foram corajosas? Não. Porque ter coragem não é culpabilizar terceiros é assumir responsabilidades. Que culpa têm as brasileiras, muitas vezes enganadas e maltratadas, cheias de vontade de mandar os homens das mães dar uma curva, que eles saiam de casa de noite com a desculpa da festa de anos do amigo ou então sem qualquer desculpa, para irem satisfazer as suas necessidades e fantasias eróticas. Para eles é um mal, ou melhor, um bem necessário.

As mães defendem a família, os filhos, a felicidade imaculada do lar. As mães esquecem-se de que são mulheres, que não têm de se subjugar ao marido, que ser feliz não é sinónimo de sagrada família e que afinal nem só de pão vive o homem. Falta-lhes a coragem e o respeito próprio.

A Time achou ter neste triste episódio um grande furo jornalístico e chamou duas prostitutas até às muralhas do castelo, porque fotos de “monumentos” ficam sempre bem...

Depois do caso “Mães de Bragança”, quis acreditar que pelo menos alguns traficantes de mulheres fossem julgados e punidos. Mas, na realidade, os que não fugiram para o Brasil continuam a passear-se por lá e a fazer “render o peixe”.

Os comerciantes também já se manifestaram. Dizem eles que há menos brasileiras, e isso é mau. As cabeleireiras já não têm quem pentear e os taxistas, que já nem abriam a porta de dia, deixaram também de a abrir à noite.

Certo é que nem antes nem depois se viram mulheres da vida nas ruas de Bragança, a andar de um lado para o outro, a seguir à frente de um homem gordo, com o cabelo desgrenhado e barba por fazer, acabado de encher a barriguinha em casa e com vontade de chegar e vencer. Em Bragança eles têm de entrar numa daquelas casas por onde se passa e se vira a cara, têm de se sentar num sofá de veludo vermelho (ou numa cadeira de pau velho) e observá-las recostados; têm de beber cerveja e ganhar força para subir as escadas do andar de cima e caber na porta do quarto.

Em Bragança, há prostituição tal como no Porto, em Lisboa, em Faro ou em Viseu. E acalmem-se os mais susceptíveis e que eventualmente não moram numa destas cidades, porque nas outras também há. O que não há, pelo menos que se tenha visto, são umas mães como aquelas. Mas isso, já se agradece.