Friday, December 5, 2008

“Chamo-me António Silva, não sou actor de cinema. Sou o engraxador da Praça da República!”


Enquanto o Sol bate na praça, enquanto corre a azáfama de mais um dia de gente atarefada de regresso a casa; de velhos, bancos e jogos de cartas; de sem-abrigo à procura de um cigarro e taxistas estacionados na berma; está António Silva a engraxar sapatos e a cantar: “E ao povo que passa mete muita graça este meu apregoar.”


Ao pé dele, apoiado na bengala de madeira castanha escura, o companheiro de tardes e de conversas nos intervalos entre um e outro cliente. “Vai uma engraxadela?”

A caixa que guarda os materiais revela os 66 anos de uso. O engraxador tem 80 anos, as mãos pintam-se com o preto da graxa desde os 14. São 18horas e é tempo de balanço. “Ganhei o gosto a esta profissão, que dizer, foi o que a vida me permitiu. Não gosto muito, mas tenho de gostar. Até porque a minha reforma é bastante baixa e isto ajuda-me a viver.”


António Silva faz parte da história da praça, fez-se nela moço e velho e é com ela e nela que se recorda de si. A vida exigiu-lhe uma profissão pela qual nunca foi apaixonado, mas é com orgulho que diz ter sido o “1º engraxador da sua falecida mãe”.


Longe vão os dias em que lhe pagavam 5 tostões por engraxar uns sapatos. Agora, por 1 euro, um homem de gravata azul-escura pousa o pé no apoio da caixa e lê o jornal enquanto o “não actor”, mas artista, lhe “puxa o lustre” ao sapato. Conversam pouco.


“Hoje 5 tostões não dão para nada, nem para um rebuçado. Engraxei milhares de sapatos a cinco tostões, depois foi subindo para 8, 10, 12, 15 e por aí fora. Ganho sempre para mandar tocar um cego.”

O engraxador de sapatos, que também faz “consertos, ponho meias solas, bicos...tudo!”, é, ainda, o homem dos sete ofícios: Tive diversos empregos, desde sapateiro, em que ganhava 7 tostões, até trabalhar numa casa de molduras a ganhar 5 escudos, depois numa fábrica de fechaduras e muitos mais.” Engraxar sapatos nunca foi suficiente para sobreviver... Sempre foi essencial para viver: “Se não viesse para aqui já tinha morrido. Isto ajuda-me a passar o tempo.”


Ao som do vai e vem da escova “faz contas à vida”, viaja entre sonhos e pensamentos, observa e absorve a evolução do mundo através da praça. Já por lá passou um sem fim de sapatos, à razão de dois por pessoa, a caixa do engraxador guarda a recordação de cada um deles. Mas guarda também os dias em que a entrada do quartel se enchia de gente para almoçar. “ A recordação que tenho é que a miséria era tanta que vínhamos aqui à Praça da República buscar rancho para comer. Estava cá a infantaria 6, vínhamos aos 40 rapazes e raparigas.”


Os olhos azuis de António Silva inundaram-se de lágrimas e o tempo concentrou-se nele, assim como as imagens daquela mesma praça animada de outras cores e de outras gentes. Permaneceu em silêncio. Voltou o olhar para os sapatos arranjados e pousados na sebe do jardim. Contemplou-se no seu trabalho e regressou. “Hoje vivo melhor do que antigamente, antes quero o mal de agora do que o bem de antigamente.”


Hoje, abriga-o um casaco de ganga gasto sobre uma camisa e duas camisolas desbotadas, e aguarda-o uma pequena casa vazia e solitária ali perto. No sorriso sereno e contido revela o que lhe resta de felicidade. “Olhe eu sou feliz, mas podia ser muito mais. A minha tristeza chegou há 17 anos quando morreu a minha esposa.”

Martelou com as mãos firmes e experientes, ser engraxador exige destreza manual. Mas com o avançar dos anos dissipou-se a destreza das principais artérias da cidade. E o Porto, cidade de pequenos apontamentos históricos e tradicionais, perdeu graxa e algum brilho. Desapareceu o engraxador da Cordoaria, do Marquês, da Boavista. Ainda há um nos Aliados.


“Aqui neste diâmetro, desde a praça da liberdade até à igreja da Lapa estávamos 14. Estão todos à minha espera, morreram todos. Eu sou o número um, o chefe deles.”

Resta a obstinação de um capitão que se recusa a abandonar o seu navio ao tumulto das vagas, que endireita a boina orgulhosa frente à lente da câmara fotográfica.


Não é fácil ser o chefe, porque não é fácil resistir à mudança. Mas as mãos são as mesmas e o homem está só mais velho. “A minha política é trabalhar, comer e beber.”

Não é avesso à modernidade, gostava, antes, de ser incluído nela. Em 2007, a Lusa noticiou um projecto de revitalização da profissão: “ler ou navegar na internet enquanto os sapatos são engraxados”. Lançada nas Caldas da Rainha, no “Primeiro Encontro Nacional de Engraxadores, para não deixar morrer uma profissão em vias de extinção”, que o “nosso” engraxador nem sabia que existia. A iniciativa pretendia criar um quiosque interactivo de engraxadores do século XXI onde se poderia localizar um posto para as pessoas deixarem e levarem literatura, obterem informação turística, poderem ler a imprensa ou consultar a internet enquanto engraxavam os sapatos.


António Silva gostava de um quiosque assim e gostava que a “rapaziada nova” não teimasse em usar sapatilhas, as mesmas que usa o seu companheiro de tardes, amigo, de óculos grandes, camisola azul lavada, ar atento e informado, de jornal em punho e ouvido nas respostas do engraxador, que lhe retribui a atenção enquanto ajeita um sapato preto.


Não se lembra de algum dia ter engraxado os sapatos a uma figura importante, “engraxava a qualquer um, alguns nem pagavam. Apanhavam os sapatos engraxados e dinheiro? Punham-se a andar. E eu não ía correr atrás deles, para quê? Não tinham dinheiro, como é que iam pagar? Iam presos? Oh! Lá os deixava ir...” Sorriu, ao mesmo tempo pegou num saco de plástico e guardou um dos pares de sapatos secos na sebe.


Depois, lembrou-se das pessoas mais abastadas e importantes que conheceu. Moraram naquela casa ardida, ao seu lado direito. “Aquela casa era de um casal riquíssimo, os donos das “Águas Luso”. Morreram, ficou para o filho que a alugou. Agora ía abrir lá uma clínica, mas um dia de madrugada deitaram-lhe fogo e acabou tudo.” Aos olhos do engraxador a casa renasce cheia de luz e movimento, de vida e de graça, aos nossos sucumbe sob o negro da fuligem, cinge-se a um aglomerado de paredes sujas e janelas “desenvidraçadas”, onde dormitam um ou dois toxicodependentes. Abandonados.


A voz fraqueja-lhe de repente e António Silva pergunta-se: “quem precisa de um engraxador?” Já se anunciam aparelhos automáticos, que engraxam rápida e eficazmente. Antes, os grandes senhores gostavam de andar polidos e precisavam de alguém que não se importasse de sujar as mãos para lhes dar brilho e alento na caminhada. Antes, António tinha uma pequena fila de sapatos para engraxar. Agora, “alguns têm vergonha de vir aqui, ao velho engraxador.”


Mas ali, na Praça da República, sentado naquele pedaço de passeio ao Sol, não está somente o velho engraxador e a sua caixa mas também a luz dos olhos perspicazes e sábios de um contador de estórias. António Silva vê passar todos os tipos de pessoas, adivinha-lhes os jeitos e o que lhes vai na alma, descodifica-as à sua maneira, não as julga. Diz não perceber nada de política, não conhecer muitos escritores, actores ou músicos. “Trabalhei sempre aqui na cidade do Porto, aliás sempre aqui na Praça da República, mas conheço o suficiente da vida e do mundo.” E conhece.

Escurece, a praça à noite não lhe pertence. Acomoda com vagar as ferramentas na caixa, enquanto se despede com o olhar. Caminha em direcção a casa. Fita os próprios pés, e os sapatos mal engraxados. Mas ele não é actor de cinema, é apenas o engraxador da Praça da República.

Sunday, November 30, 2008

A menina


A menina saiu de casa com o casaco vermelho e a mala castanha, percorreu os caminhos de sempre e não reparou em nada, deixou que a luz do dia se concentrasse apenas em si e no coração que levava apertado. O Porto tornou-se cinzento triste e as pessoas, que outrora o pintaram de muitas cores, apagaram-se com a água da chuva. Reparou em si e já não tinha o sorriso...

Wednesday, October 22, 2008

Nos olhos...as estrelas...

Sentada nos cartões que alguém reservou para os gatos, com as pernas tapadas até aos tornozelos, ela molhava-se...enquanto chovia. Pés de unhas negras, enormes; pés calejados, descalços, molhados. Chamou mais a minha atenção por ser aquela mulher e ter aquele olhar meigo e de loucura; por não pertencer ali mas ter o direito de pertencer ao mundo.


- Obrigada menina. Só estou aqui a fazer horas, à espera que abra o albergue, que agora não me deixam ir para lá.

- Ah....está bem...

- É é...às seis já abrem. São as cinco, agora, não é menina?

- Sim, são as 5h...

- Obrigada.


(avancei)


E gritou-me...

- Obrigada minha menina, obrigada.


Tem cabelo branco, muito sujo e apertado. Tem um lenço preto tingido de manchas e tem aquela praça que se faz deserta, em frente à faculdade. No dia seguinte, quando lhe demos o pão e o leite, chorou. Mas já não chovia.


- Onde dorme? Tem sítio para ficar?

- Durmo numa casa ali em baixo. Já me abrem a porta. Não digam a ninguém meninas.


Não quer camisolas vermelhas, azuis ou amarelas. Quer a cor mais próxima do luto que carrega.


- Esta camisola vou levá-la amanhã à igreja, porque cheira bem.


E agarrou-se a ela com carinho. Foi como se o Sol abrisse por entre as nuvens agitado pela luz daquele sorriso, foi como se o mundo fosse de cores suaves e sensações quentes. Foi como se fosse perfeito...

Gosto dela, velhinha deambulante.

Mas não gosto de imaginá-la sozinha na praça, no lugar dos gatos...Pelo menos não chove e guardadas nos olhos fechados tem as estrelas...

Sunday, October 12, 2008

O que há em mim é sobretudo cansaço



O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço...

Álvaro de Campos

Wednesday, October 8, 2008

Regina Spektor

Vale a pena descobrir...a voz e o piano.


Parte I : Perdi-me no cinzento e reparei...

De camisa de noite lilás, aquela sensual, de seda justa ao corpo...saiu até ao alpendre. Os pés descalços sentiram o frio da manhã, o resto sentiu o sol que nascia devagarinho e a segunda-feira soou a sábado tardio e preguiçoso. Sentiu-lhe o toque, suave como a camisa, quente como o sol...As tábuas do alpendre rangeram, naquele som indescritível de tábuas calcadas a dois...num só. Quando o sol é assim e o céu é azul, quando até se vêem borboletas brancas e girassóis amarelos encantados, o mundo parece perfeito...Mas ele foi-se e o tempo deixou-a perdida...

Há muito que não se sentia assim, mas em frente da secretária de madeira escura viu-se obrigada a mudar de sentido. Cabelo apanhado, ar impenetrável e confiante, fato cinzento escuro de saia justa por baixo do joelho, passo firme em cima dos saltos finos de uns sapatos únicos, brilhantes; estão entre os seus preferidos na prateleira do meio do armário onde guarda mais de 100...Multipliquem-nos por muitos dias, muitas estórias, muitos andares. Haverá, portanto, uns sapatos nervosos, outros ansiosos, orgulhosos, entusiasmados, cansados, irrequietos e calmos, tristes e felizes. Não há sapatos no armário que lhe recordem aquela manhã, sentiu-a mais à flor da pele por isso, e à flor da pele tem hoje a vontade de descalçar novamente os sapatos. Mas tem a reunião do meio dia em jeito de almoço com o resto da equipa da empresa e tem uma nova manhã, de botas castanhas...

Hum...nem imaginas o que vou fazer com o meu casaco azul escuro e apertado na cinta, cabelo apanhado e sexy, botas altas castanhas...São 10h30 da manhã, vou em direcção à foz. E isto agrada-me no começo do dia.

Deixa-me, antes, aproveitar para te contar que parei num Banco para depositar cheques, nos aliados, e deu-me uma súbita vontade de percorrê-los pelo centro, a pé. Já olhaste os aliados de baixo? Já encheste os olhos, cá do fundo em direcção à Câmara? Já não os olhava assim há algum tempo. Perdi-me no cinzento e reparei. Sozinho num banco, um livro de capa branca e marcador prateado. Prendeu-me a ele e trouxe-o comigo. Mas depois conto-te o resto, já estou atrasada...

Vou seduzi-lo, a estratégia é entrar na pastelaria, pedir um daqueles croissants gulosos e juntar-lhe aquele meu ar deliciado, que sei que seduz. E ele já está a olhar para mim mais derretido que a manteiga. Caminho escorregadio, para ele. Dentro de poucos segundos vou saber tudo o que quero. Os meus olhos castanhos de mel estão agarrados aos verdes dele. Falo descontraidamente enquanto ele tenta acompanhar o meu ritmo alucinante...foi o que ele disse que eu tinha. Acabei de dar uma daquelas gargalhadas...Ritmo alucinante? Gosto de acordar cedo e ter muita coisa para fazer, de me deitar tarde a pensar na agitação do dia seguinte, de correr de um lado para o outro, de ter meia hora para almoçar, de chegar em cima da hora mas a tempo...talvez ligeiramente alucinante...

E já está. Acabou de me revelar tudo. Um beijo e um olhar de despedida, daqueles que se arrastam (nele) e deixam vontade de mais. A conquista faz-se devagar e é tanto mais forte quanto mais forte é a vontade do outro em ser conquistado. Ele tem pressa, eu tenho vagar. Funciona assim, porque eu quero.

- Luísa, posso ligar-te mais tarde?
(Sorri...)

Tuesday, September 23, 2008

Sopro...

O Porto volta a reconstruir-se nos meus olhos, e depois da ausência das férias volta a surpreender-me. Nunca um lugar me tratou assim, nunca um lugar me foi trazendo tanto com tão pouco, ou tão simples...


E depois de uma busca de livros na Biblioteca Almeida Garret, na companhia da Mafalda e da Ina, e do passeio com conversa agradável naquele jardim do Palácio de Cristal, veio ao nosso encontro a Sara, velhinha de cerca de 80 anos...julgo eu.


É como se o mundo soprasse na minha direcção devagarinho. Porque nem a entrada no rosa e amarelo queimado da Rota dos Chás, nem o chá ou a tarte de chocolate e framboesa me tinham soltado o sorriso, como já tantas vezes o haviam feito. Porque há, quase sempre, nesta atmosfera, na sonoridade que a preenche e no cheiro que emana algo que me inebria e absorve, que me atira o olhar para a paz do vazio enquanto ao mesmo tempo me desperta intensamente os sentidos. Quem já lá esteve é bem capaz de me compreender, pelo menos em parte. E lembro-me da primeira vez...daquela noite de teatro (em que vi "Aquário") no museu do carro eléctrico do Porto, da chuva que me fez correr e quase cair na rua, que detestei que me molhasse mas que adorei ver molhar quando me sentei e senti ali...cheia da estória das personagens, ainda envolvida pelo estalar das palmas e de repente naquele calor, na luz trépida das velas, no perfume doce do meu romântico “Dim sum chá”. Depois dessa noite decidi apresentar o espaço a todos os que achei merecerem partilhá-lo comigo, faltam alguns é certo...não falta a minha vontade de os ver saboreá-lo comigo.


Mas naquele dia o coração tinha apertado tanto que reprimiu o que se faz, quase sempre, de mim ali...e foi preciso mais, foi preciso a Sara:


- Somos nós que construímos a nossa felicidade meninas...


E a Sara só queria saber se havia uma exposição nova (e gratuita) no Pavilhão Rosa Mota, uma daquelas que sabe bem porque nos obriga a reparar demasiado, com medo de perder um pedaço de vida; uma daquelas que nos alimenta de beleza, arte, conhecimento; uma das que vale a pena, não por ser gratuita (embora isso ajude) mas porque nos movimenta. Queria tão pouco a Sara...e deu-nos tanto. Deu-me o Sol que brilhava nesse dia, deu-me as folhas secas e torradas de Outono a aquecerem a terra, deu-me o transparente da água do “lago”, os patos e o seu deslizar suave, os livros que requisitei e o desejo de perscrutá-los e de me embrenhar neles...e deu-me aquela minha vontade eterna de sonhar. Deu-me as mãos e o carinho e adivinhou o tanto que eu precisava deles.


Se soubesse como ajudou a construir a minha felicidade...Pedi ao mundo que soprasse na direcção dela...devagarinho.

Tuesday, August 5, 2008

Soube bem ler...:)



"A Dama Misteriosa de Florença",

de Nora Roberts

À velocidade do metro...

O metro passava devagar em cima da ponte D.Luís. 22h30. O Douro suave lá em baixo e o olhar sobre ele, encandeado pelas luzes. Às vezes faz-se um percurso cem mil vezes e não se percebe que do dia para a noite a paisagem que o desenha muda completamente. E a mudança traz consigo o pormenor, aquele que nos espanta, emociona ou desilude.

Do lado de Gaia havia luzes roxas rua fora, havia cavalos à roda com crianças felizes no girar do carrossel. Do lado do Porto, as mesas exteriores dos restaurantes da ribeira apaixonadas, a cada olhar uma nova descoberta. E numa daquelas casas uma família peculiar. Da janela viam a Serra do Pilar, enquanto isso entornavam vinho nos copos. Vai-se construindo a estória. Podemos imaginar...O homem, com cerca de 50 anos, mas algumas rugas já demasiado vincadas no rosto, tinha mãos grossas e ar de pescador, sorriso aberto e lento, olhos quietos e enormes. Pode ser António, ter três filhos, viver com a mãe porque é viúvo, ter um carro vermelho e gostar de passear ao Domingo.

E da noite para o dia, do vinho para a água; a visão muda e transparece como o rio. Enquanto o metro passa, os turistas caminham de máquinas fotográficas em punho. É bonito. Outros navegam por baixo da ponte sentados nas cadeiras dos barcos, naquelas que parecem abanar com a ondulação, já experimentaste? E estão felizes, daqui não se vêem os rostos, mas é isto que me parece. Depois as motos de água, rápidas, agitadas. Ai...apetece-me andar numa delas.

E volto a olhar, o metro avança. Naquela noite, que descrevi antes, despertei ao chegar à estação da trindade. A voz (“a próxima paragem, trindade, tem ligação com autocarros...The next top, trindade...”) da rapariga do metro que já todos, num momento ou outro, tentámos imaginar. Precisamos tantas vezes de associar imagens aos sons e gostamos de vaguear enquanto o tempo passa entre a estação de partida e a estação de chegada.

Uma vez, sentada na estação à espera de uma amiga, a Sofia, decidi reparar em tudo à minha volta. Estava calor lá fora, e cá dentro sentados no mesmo banco frio que eu, dois velhos...ao fresco. A conversa fazia-lhes passar a tarde mais depressa, talvez ali se estivesse melhor do que em casa. E vi um menino numa cadeira de rodas de fazer inveja a qualquer um dos miúdos que pode andar...porque era colorida e tinha desenhos fantásticos nas rodas, que andavam muito rápido enquanto o menino sorria.

E vi mais, muito mais...Mas nada que agora interesse muito contar, até porque entretanto a minha amiga chegou e o meu lugar no banco ficou vazio.

Wednesday, June 18, 2008

Cancro

- Mãe...pai o que tem a mãe?

(...)

Não chores mãe...Pensei, mas não disse.

Naquela manhã de terça-feira estava Sol. Tinha-me levantado por volta das 7h, tinha aulas às 8h30. E entre a ansiedade, a esperança e o esquecimento (possível), vivi mais uma manhã, aquela manhã que decidiu concentrar-se em mim e no interior quente do carro, à hora de almoço.

Desci as escadas, num arrepio desvairado por querer saber e não querer saber; abri a porta cinzenta escura, a queimar de sol e de medo. Perdi-me lá dentro, naquele silêncio pesado, nas lágrimas dela e no esforço que fiz para as conter. Ele, dono da coragem e da força do mundo, conduziu devagar até casa, com vontade de cortar caminhos, de arrastá-los até às horas felizes, que partiram...Não me lembro do resto desse dia, por mais voltas que dê, a memória quis apagá-lo...e eu deixei porque sou fraca, porque doeu o resto desse dia, embora eu não me lembre dele. Ficou a memória do sufoco, do coração apertado, das palavras que não disse e da vontade de não querer vê-la assim...

Quero lá saber da guerra que provocou a morte a 30 mil pessoas, quero lá saber da fome que passam outros tantos, quero lá saber que sofras porque o teu namorado te deixou, que chores porque estás triste porque perdeste não sei o quê...Quero lá saber de acidentes e mortes na estrada, ou de ti infeliz a dormir na rua. Sou egoísta! Porque vê-la assim dói mais que a dor deles todos juntos, porque o medo de perdê-la é insuportável, porque eu sou pequenina e preciso dela e de vê-la sorrir...

A memória compõe-se em pedaços. É como um puzzle ou uma fotografia rasgada ao qual faltam peças ou à qual faltam partes. Guardei tanto de mau que me esqueci de guardar alguma coisa que houve de bom, tirando os abraços, mesmo assim inseguros. E ainda hoje sei que não fui a filha capaz de suportar a dor e de lhe dar o colo, o carinho, a força necessários. Quis tanto que ela fosse forte que fui eu a fraca. E na manhã seguinte, sem sol acho eu, correram-me as lágrimas que não caíram na almofada. Ali, naquela sala do último andar da escola, sentada ao lado da Ana. Controlei-me tanto, tentei concentrar-me no professor de matemática, nos números, nos exercícios, em vão. Desesperei na sala de convívio, incapaz de um sorriso no banco metálico do fundo. Perdida naquele barulho, que também guardei. Falou comigo.

- Estás de trombas hoje...

(...)

Chorei.

Prometi não chorar mais assim, escondi a cara. Mas voltei a chorar tantas vezes no chão escondido entre a cama e a janela do meu quarto que decidi não fazer mais promessas.

Seguraste-te bem mãe...tenho tanto orgulho em ti. E nunca mais vou esquecer o dia em que te vi na cama de hospital, com o sorriso mais bonito do mundo, a dizeres que eu estava linda com a minha camisola nova. Foste capaz mãe...e capaz de me dar força, quando precisavas tanto dela, de me dar alegria, quando no fundo a tinhas perdido, de apertar o nosso laço quente e amarelo como os girassóis na mesa de cabeceira. E eu senti-me pequenina mãe, e foi como se aquela febre que eu tive tivesse voltado e tu estivesses lá para me proteger. Foste capaz de tudo, mesmo nessa tua dor...foste capaz de me dar o sorriso e de me devolver os sonhos, como só tu sabes fazê-lo mãe.

Um dia, e esta é a minha única promessa, a que me move tantos dias, a que me acorda quando tenho sono, a que me torna feliz quando estou triste, a que me arranca o medo, a que é minha porque é para ti. Um dia mãe, vou ser e conseguir tudo e ver-te sorrir porque concretizámos os nossos sonhos. Só e eternamente nossos.

Sunday, June 1, 2008

“ Velhinha de cabelos compridos...”

Há dias em que apetece fazer tudo. Em que acordamos com a certeza de que vamos ser capazes, cheios de força, de vontade de vencer, de conseguir! Mas é nesses dias que a vontade se esvai à mesma velocidade com que apareceu. E mesmo depois de ter saído de casa e ser trespassado pelos primeiros raios de sol depois de dias de chuva, mesmo depois de ter partilhado sorrisos e comido batatas fritas com ketchup, de ter conversado com pessoas simples e simpáticas, cai-se na inércia...A inércia que transponho para este texto enquanto o escrevo e ao mesmo tempo penso no muito que tenho para fazer.

E de repente lembro-me do banco do lado esquerdo do autocarro e do velhinho que ia sentado à minha frente. “Sabia que vai envelhecer cedo menina?”

Na verdade eu desconhecia e sorri para disfarçar um ar incrédulo...E ele disse-me que era verdade, que o cabelo demasiado comprido favorecia o envelhecimento precoce, e que, aliás, isso estava escrito e explicado num livro de um autor qualquer, vendido numa livraria do Porto. Não fixei os nomes...

O segredo dele para aos 80 anos continuar ágil, saudável e feliz eram duas gotas de água oxigenada por dia. Bebe-as há muito tempo e tem sangue de rapaz novo, disse-lhe o médico!

Fui sorrindo, surpresa, mas deliciada com a simplicidade, simpatia e loucura (a minha) do momento. Senti todos os olhares do autocarro voltados para mim e para o meu cabelo, para o velho e para a sabedoria estranha dos seus 80 anos.

Saí do autocarro e decidi não cortar o cabelo. Gosto dele assim, e por agora quero deixá-lo comprido, até quando for velha...

À media que escrevo ganho nova vontade, vou guardá-la dentro de uma esfera de âmbar...não quero perdê-la. Faz-me falta, tal como me faz falta a vontade do meu pai e da minha mãe quando me seguram no colo, me abraçam e me chamam “minha pequenina.” Faz-me falta... ouvir o meu mano chamar-me kika e implorar-me por mais um jogo de xadrez; faz-me falta o olhar quente da minha avó a oferecer-me o melhor pão com queijo e marmelada, faz-me falta o cheiro da minha casa e o sol da minha rua.

Por mais velha de cabelos compridos que eu seja, vai-me sempre fazer falta...

Já agora, o velho de 80 anos sorriu para mim, criou um laço instantâneo comigo e eu senti-me feliz. São os meus pormenores, aqueles que guardo com carinho e que gosto de contar, porque é bom partilhar bocadinhos de felicidade.

Friday, April 25, 2008

Por mim achada...

(H) À conversa no Camarim...


Saí para ir ver “Conversas de Camarim”. A peça de Simone de Oliveira e Vítor de Sousa, com Nuno Feist ao piano. Fui em trabalho, para a Jornalismo Porto Rádio, entrevistei os actores, o público e os organizadores. Mas a experiência foi muito mais do que isso.

Foi o olhar rasgado sobre o palco e a sua essência. Foi a música, os poemas ao sabor do Vítor, as canções na voz da Simone. A sala estava cheia, nas cadeiras sentia-se o burburinho inicial, a surpresa, os risos, os aplausos...A noite correu através da conversa que os dois actores partilharam connosco. Foi bom. Foi aquele respirar profundo que nos enche a alma.

Eu fiquei sentada na primeira fila, vantagem de ser jornalista, embrenhei-me no calor do palco, arrepiei-me, deixei o coração acelerar com a beleza dos momentos. Depois, desci ao camarim, vantagem de ser jornalista, e conversei com a Simone e com o Vítor. De gravador na mão fiz perguntas de jornalista com emoção de admiradora...A Simone estava sentada em frente a um espelho inundado de luzes. Fumava e olhava-me através do verde dela...Fiquei nervosa, e depois do muito que tenho feito nem é habitual ficar nervosa assim, fico nervosa, mas passa-me com a rapidez com que passa a primeira pergunta...desta vez emocionei-me porque guardo a figura da Simone no imaginário, desde criança, porque me delicio a cada desfolhada, porque admiro a força com que encarou o cancro, porque vejo nela uma Mulher. Sem preconceitos, com verdade, com crenças, com carisma. Valeu muito a pena entrevistá-la e ouvi-la contar a estória que até já contou noutras entrevistas. O senhor da loja do Porto ofereceu-lhe as violetas por ela ser a Simone, ela recorda-o e reaviva com ele a paixão pelo Porto.

Hoje, também eu sou apaixonada por esta cidade de ritmos, de um cinzento colorido que me encanta.

Também eu recebo as minhas violetas quando passo...e sorrio à medida do tempo e das recordações. Sorrio a cada descoberta.

Um dia sei que vou ser jornalista, com o amor que já tenho ao facto de ir sê-lo. Por isso, guardo cada experiência que os trabalhos que já faço me proporcionam. Sou subjectiva, porque sou eu, procuro não a objectividade plena, mas a honestidade comigo e com os outros.

Ser jornalista não é o sonho da verdade absoluta, é o sonho das estórias que fazem o mundo e as pessoas, com tudo o que essas estórias têm, até o falso, desde que não anunciado como verdadeiro.

De regresso ao camarim...a peça foi publicada na JPR e é lá que vou recordar as conversas...

http://jpr.icicom.up.pt

Wednesday, January 30, 2008

"Cai bem..."

"Às vezes no silêncio da noite..."

Sabes quando a noite traz o silêncio? Mesmo quando os carros continuam a passar velozes lá fora, mesmo quando tens a televisão ligada num canal qualquer só para que o som te faça companhia, mesmo quando continuas a ouvir o fechar das gavetas dos armários do vizinho do andar de baixo, mesmo quando ainda sentes a música do vizinho do prédio da frente e o ladrar do cão do vizinho de cima. Enfim, quando, se pensares bem, a vida continua agitada em cada pedaço de casa e de rua, mas sentes que a noite trouxe o silêncio. E começas a ouvir o tic tac irritante do relógio que tens numa das prateleiras da estante da sala, e é exactamente esse tic tac que te dá a sensação de teres mergulhado no escuro, no vazio e no silêncio da noite.

Nunca ouço este tic tac durante o dia e acho que é mesmo por isso que o ruído dele cai como a batida forte de uma porta, porque já não é dia.

Depois de arrumar as almofadas do sofá, que no meu caso se pintam entre o azul e o verde, o laranja e o cor de rosa, apago a televisão, rodo o interruptor que me deixa às escuras e acendo a luz da casa de banho. Gosto de me lembrar que fiz exactamente o mesmo na noite anterior, que com o tempo fiz de mim os meus gestos e os repito sem pensar, porque são definitivamente meus. Vou à casa de banho, retomando, visto o pijama quente de inverno, lavo os dentes e passo água na cara. Depois olho-me ao espelho, reconheço-me no espaço e no tempo de mais um dia, continuo a menina que gosto de ser e ainda tenho os meus 19 anos.

Gosto de trancar a porta, de fazer barulho ao girar a chave, de me sentir segura quando prendo o cadeado e de no instante a seguir ir até à cozinha, abrir o armário e pegar num copo onde verto o leite do pacote que tirei do frigorífico. Depois ( e com este "depois" lembrei-me dos textos que escrevia quando era pequenita, que contavam estórias cheias de e depois...e a professora dizia..”morreram as vacas e ficaram os bois”) vou buscar as bolachas, chipmix, aquelas do pacote azul, com chocolate qb. Delicioso, reconfortante.

Há tempo para pensar, para fervilhar em ideias, para me imaginar a sorrir quando concretizar os meus sonhos. Há tempo para me sentir feliz, para me sentir triste, sozinha e acompanhada. Há tempo para sentir saudades da cozinha da minha casa de sempre, em Bragança, da carpete colorida e das torradas do meu pai. E há tempo para pensar neles, e no carinho que me dão todos os dias, neles que me preenchem a alma e o coração. Há tempo para pensar em ti.

Segue-se o “ajeitar dos lençóis”, o virar consecutivo na cama até encontrar a posição ideal, quentinha, até respirar devagarinho. Gosto do caracol estampado na almofada da minha cama.