Friday, June 5, 2009

Sonhos... de Kadaré


Há uns tempos entrei no “Palácio dos Sonhos”. A visita foi guiada por Ismail Kadaré e ficou-me para sempre na memória. É por isso que hoje, já à distância, ainda a recordo assim:

Um hino à liberdade através do retrato de um regime opressor e intrometido no que de mais íntimo e livre possuímos, talvez porque não o controlamos: o sonho.

A obra de Kadaré tem um primeiro impacto “estranho”, e desenrola-se através da estrutura rígida e misteriosa de um palácio invulgar onde acaba de entrar um novo trabalhador. Confesso que não me lembro do nome, a “visita” foi no verão passado, mas lembro-me que o novo funcionário partilha do nosso sentimento de ignorância ou desconhecimento em relação ao palácio. É aos poucos, à velocidade que o tempo, a experiência e a curiosidade lhe permitem, que também nós percebemos as funcionalidades de cada sala, descodificamos o ar cerrado dos colegas de trabalho, e que chegamos às “catacumbas” dos registos dos sonhos.

O livro traz-me à memória um outro, “1984” de George Orwell, a observação transformada em espionagem, o controlo, a opressão. Mas aqui, no palácio, muito mais camuflados e muito mais no domínio do inconsciente.

Se até os nossos sonhos fossem controlados, o mundo perderia a lógica e o sentido, e viveríamos no meio de um devaneio obtuso, incapacitante e capaz de nos tirar o sono. Os sonhos representam, talvez, a expressão máxima do que ainda conservamos de puro, já que fogem à nossa racionalidade e, mesmo assim, são condicionados pelas experiências que nos marcam enquanto estamos acordados.

Estou tentada a revisitar o palácio, e deixem-me dizer-vos que vale muito a pena entrarem neste estranho mundo de Kadaré e na reflexão que proporciona.

Nota sobre o autor:

Kadaré é um escritor libanês, nascido a 28 de Janeiro de 1936, que presenciou a devastação da Albânia pelas tropas que se enfrentaram durante a Segunda Guerra Mundial. “O Palácio dos Sonhos”, publicado em 1992, é uma das suas obras mais inconformista e anti-totalitária.

Thursday, June 4, 2009

"Simulation age" - Simulamos ou não?

Numa época cada vez mais vivida e experienciada no e através do ciberespaço, Paulo Frias*1 diz que “o indivíduo plural, ambíguo e ubíquo ocupa, em cada momento da sua vivência online, um espaço mentalmente elaborado e concordante com a(s) identidade(s) assumida(s).”
Somos, então, confrontados com o “conceito” ou ideia de múltiplas identidades e consequentemente com aquilo que Turkle designa de “life on the screen” (Turkle 1995). Para a autora, a possibilidade de nos dividirmos e agirmos em campos distintos com personalidades distintas foi potenciada pelos computadores e, mais especificamente, pela Internet (ciberespaço, cibercultura). Turkle refere-se a “windows”: "the development of windows for computer interfaces was a technical innovation motivated by the desire to get people working more efficiently by cycling through different applications. But in the daily practice of many computer users, windows have become a powerful metaphor for thinking about the self as a multiple, distributed system." (Turkle 1995:19)

Será que vivemos numa era de simulação, em que cada uma das “ferramentas” disponíveis online e que nos transporta para novas “janelas” não é mais do que um simulador? Como afirma Frias, “a emergência de uma nova cultura contemporânea de simulação revela-se na tentativa de transcender os limites da existência criando simulações que parecem reais, e tornando a realidade cada vez mais parecida com uma simulação.”

Ou seremos, nós próprios, navegadores do ciberespaço, os simuladores? Talvez a “janela virtual” seja apenas mais um campo de simulação, ou uma forma de “colocar em acção” outras linhas da nossa personalidade. A verdade, é que mesmo no mundo dito “real”, o Ser Humano tende a adaptar-se às exigências do meio e a moldar a personalidade às circunstâncias em que vive em determinado momento. Somos, portanto, plurais e não unitários. Paulo Frias considera, ainda, que “a fruição de espaços multifacetados e recicláveis em cada instante, potenciam a formação de identidades plurais,compreensivas, que aceitam as diferenças e a diversidade. Mas, acima de tudo, que pretendem gozar a faculdade de serem aquilo que querem e que eventualmente não podem ser no "mundo real". Esse mesmo mundo que, progressivamente, se transforma em apenas mais uma instância de simulação.”
Assim, como diz Turkle, todos os nossos “eus” merecem ser explorados. Hoje, esta “estética da simulação” está impreterivelmente infiltrada no “dia-a-dia” de todos aqueles que se movem no espaço virtual. Porque da gestão do dia faz parte a gestão dos movimentos de cada um no “ciberespaço”, e a própria acção dos indivíduos na janela do “mundo real” está intrinsecamente ligada à sua acção no “mundo virtual”. Talvez a tendência seja a de não separar os “dois mundos”, já que os “utilizadores” são os mesmos. E muitas vezes, aquilo que alguém constrói e difunde no ciberespaço, seja através de blogues, sites, chats, ou outros, tem como objectivo alcançar as consciências do “mundo real”, daí a constante passagem de conteúdos de um meio para o outro; e despoletar reacções que gerem satisfação pessoal a quem constrói e contribuam para a evolução de mentes cada vez mais multifacetadas, espelho de um “eu” com múltiplas personalidades.

*1 – Frias, P., “Simulação & Simuladores uma nova estética online”, in http://prisma.cetac.up.pt/artigospdf/6_paulo_frias_prisma.pdf, consulta em 7 de Dezembro de 2008.