Wednesday, June 18, 2008

Cancro

- Mãe...pai o que tem a mãe?

(...)

Não chores mãe...Pensei, mas não disse.

Naquela manhã de terça-feira estava Sol. Tinha-me levantado por volta das 7h, tinha aulas às 8h30. E entre a ansiedade, a esperança e o esquecimento (possível), vivi mais uma manhã, aquela manhã que decidiu concentrar-se em mim e no interior quente do carro, à hora de almoço.

Desci as escadas, num arrepio desvairado por querer saber e não querer saber; abri a porta cinzenta escura, a queimar de sol e de medo. Perdi-me lá dentro, naquele silêncio pesado, nas lágrimas dela e no esforço que fiz para as conter. Ele, dono da coragem e da força do mundo, conduziu devagar até casa, com vontade de cortar caminhos, de arrastá-los até às horas felizes, que partiram...Não me lembro do resto desse dia, por mais voltas que dê, a memória quis apagá-lo...e eu deixei porque sou fraca, porque doeu o resto desse dia, embora eu não me lembre dele. Ficou a memória do sufoco, do coração apertado, das palavras que não disse e da vontade de não querer vê-la assim...

Quero lá saber da guerra que provocou a morte a 30 mil pessoas, quero lá saber da fome que passam outros tantos, quero lá saber que sofras porque o teu namorado te deixou, que chores porque estás triste porque perdeste não sei o quê...Quero lá saber de acidentes e mortes na estrada, ou de ti infeliz a dormir na rua. Sou egoísta! Porque vê-la assim dói mais que a dor deles todos juntos, porque o medo de perdê-la é insuportável, porque eu sou pequenina e preciso dela e de vê-la sorrir...

A memória compõe-se em pedaços. É como um puzzle ou uma fotografia rasgada ao qual faltam peças ou à qual faltam partes. Guardei tanto de mau que me esqueci de guardar alguma coisa que houve de bom, tirando os abraços, mesmo assim inseguros. E ainda hoje sei que não fui a filha capaz de suportar a dor e de lhe dar o colo, o carinho, a força necessários. Quis tanto que ela fosse forte que fui eu a fraca. E na manhã seguinte, sem sol acho eu, correram-me as lágrimas que não caíram na almofada. Ali, naquela sala do último andar da escola, sentada ao lado da Ana. Controlei-me tanto, tentei concentrar-me no professor de matemática, nos números, nos exercícios, em vão. Desesperei na sala de convívio, incapaz de um sorriso no banco metálico do fundo. Perdida naquele barulho, que também guardei. Falou comigo.

- Estás de trombas hoje...

(...)

Chorei.

Prometi não chorar mais assim, escondi a cara. Mas voltei a chorar tantas vezes no chão escondido entre a cama e a janela do meu quarto que decidi não fazer mais promessas.

Seguraste-te bem mãe...tenho tanto orgulho em ti. E nunca mais vou esquecer o dia em que te vi na cama de hospital, com o sorriso mais bonito do mundo, a dizeres que eu estava linda com a minha camisola nova. Foste capaz mãe...e capaz de me dar força, quando precisavas tanto dela, de me dar alegria, quando no fundo a tinhas perdido, de apertar o nosso laço quente e amarelo como os girassóis na mesa de cabeceira. E eu senti-me pequenina mãe, e foi como se aquela febre que eu tive tivesse voltado e tu estivesses lá para me proteger. Foste capaz de tudo, mesmo nessa tua dor...foste capaz de me dar o sorriso e de me devolver os sonhos, como só tu sabes fazê-lo mãe.

Um dia, e esta é a minha única promessa, a que me move tantos dias, a que me acorda quando tenho sono, a que me torna feliz quando estou triste, a que me arranca o medo, a que é minha porque é para ti. Um dia mãe, vou ser e conseguir tudo e ver-te sorrir porque concretizámos os nossos sonhos. Só e eternamente nossos.

Sunday, June 1, 2008

“ Velhinha de cabelos compridos...”

Há dias em que apetece fazer tudo. Em que acordamos com a certeza de que vamos ser capazes, cheios de força, de vontade de vencer, de conseguir! Mas é nesses dias que a vontade se esvai à mesma velocidade com que apareceu. E mesmo depois de ter saído de casa e ser trespassado pelos primeiros raios de sol depois de dias de chuva, mesmo depois de ter partilhado sorrisos e comido batatas fritas com ketchup, de ter conversado com pessoas simples e simpáticas, cai-se na inércia...A inércia que transponho para este texto enquanto o escrevo e ao mesmo tempo penso no muito que tenho para fazer.

E de repente lembro-me do banco do lado esquerdo do autocarro e do velhinho que ia sentado à minha frente. “Sabia que vai envelhecer cedo menina?”

Na verdade eu desconhecia e sorri para disfarçar um ar incrédulo...E ele disse-me que era verdade, que o cabelo demasiado comprido favorecia o envelhecimento precoce, e que, aliás, isso estava escrito e explicado num livro de um autor qualquer, vendido numa livraria do Porto. Não fixei os nomes...

O segredo dele para aos 80 anos continuar ágil, saudável e feliz eram duas gotas de água oxigenada por dia. Bebe-as há muito tempo e tem sangue de rapaz novo, disse-lhe o médico!

Fui sorrindo, surpresa, mas deliciada com a simplicidade, simpatia e loucura (a minha) do momento. Senti todos os olhares do autocarro voltados para mim e para o meu cabelo, para o velho e para a sabedoria estranha dos seus 80 anos.

Saí do autocarro e decidi não cortar o cabelo. Gosto dele assim, e por agora quero deixá-lo comprido, até quando for velha...

À media que escrevo ganho nova vontade, vou guardá-la dentro de uma esfera de âmbar...não quero perdê-la. Faz-me falta, tal como me faz falta a vontade do meu pai e da minha mãe quando me seguram no colo, me abraçam e me chamam “minha pequenina.” Faz-me falta... ouvir o meu mano chamar-me kika e implorar-me por mais um jogo de xadrez; faz-me falta o olhar quente da minha avó a oferecer-me o melhor pão com queijo e marmelada, faz-me falta o cheiro da minha casa e o sol da minha rua.

Por mais velha de cabelos compridos que eu seja, vai-me sempre fazer falta...

Já agora, o velho de 80 anos sorriu para mim, criou um laço instantâneo comigo e eu senti-me feliz. São os meus pormenores, aqueles que guardo com carinho e que gosto de contar, porque é bom partilhar bocadinhos de felicidade.