Friday, December 7, 2007

No Cabo do Mundo, ao sabor da pena de Laura Costa...(Parte III)


A Laura tem no seu livro várias descrições, os cheiros, as cores. É muito observadora?

Sim, é interessante. Não é muito fácil, é preciso muita paixão pelo que se vê e pelo que se escreve para poder retratar e tentar que as outras pessoas percebam a que é que cheira, o que é que se sente, e tentar que isso saia fora do papel. Acho que é um dom, acho que não se aprende, é mesmo um dom da própria pessoa que escreve juntar no papel aquilo que sente, que vê e aquilo que vai capturando para depois conseguir que saia do papel. E eu tento explorar este dom, porque é aquilo que eu gosto de escrever e também de ler, quando leio também gosto de sentir. Por exemplo, a Laura Esquivel, é uma chilena que eu leio muito e tem um livro que eu adorei e que já li diversas vezes. Ela tem as receitas de uma tia e o livro é a volta disso, está relacionado com as receitas e eu consigo cheirar o alho, consigo estar a ler e a sentir o cheiro daquela cozinha e daqueles vapores, e é muito interessante, é muito bom. E é isso que eu gosto que o leitor sinta, aquilo que eu estou a sentir na altura em que estou a escrever.

Eu sou muito observadora, hoje nem tanto, uma pessoa tem outro tipo de vivências e começa a ver as coisas de forma diferente, mas as crianças têm muita tendência de querer levar tudo ao mesmo tempo, sobretudo quando gostam, e eu tinha medo de me esquecer, e entao escrevia para não me esquecer...Gosto mesmo de guardar tudo.

A sua paixão pela fotografia tem a ver com a sua necessidade de guardar tudo?

A fotografia surge porque eu tenho muita pena de não registar alguns momentos. Uma coisa é escrever outra coisa é ter uma imagem. Por exemplo, hoje fui almoçar ao Palácio de Cristal e como estamos numa época muito bonita de Outono em que as folhas são de todas as cores fiquei com muita pena de não ter levado a câmara, e principalmente porque é digital e depois brinco com ela, como toda a gente brinca com uma câmara digital. Fiquei mesmo com muita pena, mas vou pegar nela e levá-la, porque há coisas que eu acho que não se deviam perder, há fotografias, imagens que falam por si e acho que não se deviam mesmo perder. Na fotografia gosto de captar os cantinhos e os recantinhos, gosto de tirar rostos e pormenores, pormenores que passam despercebidos a qualquer pessoa.

E em relação à pintura. O que procura transmitir quando pinta?

A pintura é mais para relaxar, é..Quando eu estou a pintar não penso em nada, quando estou a escrever penso em muita coisa. Quando estou a pintar estou num mundo completamente diferente, as sensações que tenho são completamente diferentes. Todas as exposições em que me pediram para entrar eu recusei, fiz uma exposição colectiva e nunca mais fiz nenhuma. Porque as pinturas que eu faço normalmente, faço para o sítio onde as quero colocar e neste momento não sou capaz de imaginar, sequer, tirar um quadro e mostrá-lo a A B ou C. Enquanto que o livro tenho todo o orgulho em que as pessoas o leiam e apreciem, com o quadro não sinto o mesmo à vontade, porque é um momento de relaxamento que eu tenho. Pego numa tela e faço qualquer coisa,é diferente. Às vezes os quadros saem esquesitos, porque estou mais nervosa ou chateada. É mais isso, é uma forma de retratar uma emoção diferente.

Tem também um blogue, “Vendo passados”, onde tem vários textos e sobretudo poemas. E lá define-se como uma informaníaca e também maníaca pelo prazer que a vida lhe proporciona...

Maníaca pela vida, sim. Toda a gente que gosta de viver é. Sou maníaca pela vida, sedenta da vida, sou uma pessoa que gosta muito de viver, gosto muito do que faço, apesar de ter os aborrecimentos que toda a gente tem. Mas o prazer que a vida nos proporciona é único e devemos aproveitá-lo bem. E estamos sempre a tempo de aproveitar todos os bocadinos da vida.

Um dos poemas que está no blogue é “O Homem que tinha asas de Condor”, que aliás faz parte do seu livro. Ao longo da sua vida tem sido fácil soltar-se das amarras, voar sozinha e devolver as asas ao condor?

Eu vivi muito revoltada, apesar de ser a mais nova e os meus pais já terem uma certa idade e serem mais permissivos, mas eu queria sempre mais, mais em termos de liberdade, achava que ninguém me iria impedir de fazer as coisas. E foi por isso que eu com vinte anos decidi comprar um apartamento e sair de casa. Comecei a trabalhar muito cedo, entrei na faculdade e ao mesmo tempo comecei a trabalhar. Hoje em dia os miúdos não sentem tanto isso, porque têm muito mais facilidade em viver as coisas e não têm vontade de sair de ao pé dos pais. Eu sentia muitas amarras porque me sentia muito limitada, e enquanto havia colegas minhas e até mesmo os meus irmãos muito mais acomodados à situação, eu sempre fui muito revoltada e muito diferente. Queria muito desatar essas amarras, porque eu não tinha nada a ver com aquilo e queria ser uma pessoa liberta de preconceitos, de tabus, como sou ainda hoje. Essas amarras siginificam a forma como me obrigavam a estar atada e não era só fisicamente, era a outros níveis. Eu queria voar sempre mais alto, mostrar que tinha capacidades, porque é engraçado, eu ponho-me a pensar como gostava que os meus dias fossem diferentes uns dos outros. Nós damos por ela a viver os dias muito iguais e isso é uma coisa que me dói e eu tento sempre que as coisas não sejam assim, tento sempre dar um gosto diferente ao dia, acordar com uma ideia nova ou para o livro ou para uma pintura. Porque estou todo o dia ligada a um computador e estou a programar, a fazer análise ou outro trabalho que pode ser criativo em termos informáticos, mas que não é a minha criatividade pessoal. Fora do trabalho ter sempre uma ideia nova, é a tal forma que tenho de estar sempre a ver e a pensar a toda a hora. É cansativo, mas é bom. E é o que faz com que os meus dias sejam diferentes e melhores.

Como referiu, está a escrever um novo livro. Quer desvendá-lo um pouco?

Ainda é um bocadinho prematuro, porque eu tenho receio de estar a falar e depois as coisas darem outra volta. Mas o livro passa por uma homenagem a uma criança. Eu fui escuteira muitos anos e esse miúdo veio para o agrupamento com seis ou sete anos e era uma criança autista. Naquela época ninguém estava muito receptiva a aceitar crianças diferentes. Nem sabiam sequer como lidar com isso, nem o que era um autista, era só mais um deficiente. Ele chegou, integrou-se muito bem no agrupamento, eu fui uma das monitoras dele. Agora tem 30 anos e continua lá, e a mãe acha que o miúdo evoluiu muito, de uma forma que ela não estava à espera, porque ele nunca andou em colégios especiais nem nada parecido e os escuteiros deram-lhe um grande convívio. Ele ainda hoje se lembra de pessoas que já não vê há cinco, seis anos e sabe o nome delas. Conhece toda a gente do agrupamento e sente-se muito feliz lá e eu sempre gostei muito dele e sempre o entendi muito bem. Então o livro é mais ou menos uma homenagem a ele, aliás o título do livro é um nome próprio, que não é o dele, mas é o da criança que no livro é autista. Não estou a fazer muita pesquisa nem muita investigaçao, porque acho que isso acaba por ser muito maçudo e este, tal como o anterior, é também um livro de emoções. Tem, ainda, uma vertente policial porque vai acontecer qualquer coisa com essa criança e, portanto, o objectivo do livro não é chegar a li e descrever o que é o autismo, não. É mais mostar a capacidade de um autista perante a sociedade e mostrar que na realidade um autista pode ser uma pessoa com muito valor, muito válida. É um livro muito diferente que me está a dar bastante trabalho. Não lhe consigo pegar como peguei no primeiro, em que eram umas emoções atrás das outras. Este requer um tempo específico, que eu tenha um trabalho muito mais árduo em relação ao tempo, ao espaço. Mas está a dar-me muito gozo.

Não posso dizer que esteja numa fase já muito adiantada, não tenho a tal estrutura, o tal esqueleto que gostava de ter. O livro ainda vai levar muitas voltas...

Actualmente exerce uma activiade profissional e escreve. Um dia gostava de se tornar escritora a tempo inteiro?

Sim, se me reformasse...E muitas vezes eu digo isso, aliás eu já tenho 26 anos de casa e queria reformar-me com saúde, claro, e com uma capacidade semelhante à que tenho agora para poder usar o tempo da forma que eu mais gosto, que é a escrever e a pintar, sem dúvida. Gostava não de me tornar uma escritora, porque eu não me considero uma, sou antes alguém que teve coragem para escrever e publicar um livro. Considero-me uma pessoa com coragem por ter mandado cá para fora uma coisa que escrevi para mim, sou mais uma aventureira. Mas se realmente tivesse tempo, investia na escrita.

Num dos seus poemas diz.: “Estupidamente inteligente.../É assim que eu sou/Porque recupero tudo o que levas de mim.../Sempre que eu quero.” O que procura recuperar no tempo?

Por exemplo, agora tenho alturas em que me refugio na biblioteca Almeida Garret e outro dia pude trazer quatro livros. Peguei em quatro livros que achei que podia gostar e vim para a rua com um sorriso estranho porque achei que tinha outra vez cinco anos e que tinha ido à Gulbenkian, depois acabei por constatar que já os tinha lido. Mas tive o prazer “gratuito” de há quarenta anos atrás...

A partir de uma certa idade há um certo medo de não voltar a viver alguns momentos, daqueles que nos arrepiam, e o recuperar desses momentos e emoções vai fazer parte da minha vida sempre. Embora não possa recuperar sensações que tinha aos 18 anos quando via uma pessoa por quem estava apaixonada sentada numa esquina do café e ficava muito corada. São sensações únicas, que fazem o coração bater mais forte. Hoje, chegar a casa e escrever três páginas e depois ler, faz-me corar e bater o coração. Eu não sou muito presa ao passado, já passou...e o presente ja quase não é...mas foi do passado que trouxe os ensinamentos. Recuperar emoções é importante para me sentir viva.

E, agora em relação ao futuro, quais são os seus projectos?

Não me identifico muito com uma compilação de textos ou poemas, como me propôs um amigo escritor, que leu um dos meus poemas na apresentação da 2ºediçao do meu livro na Bertrand do Dolce Vita. Embora não esteja fora de questão. Só que é mais ou menos como eu voltar aos pedacinhosde mim e juntá-los num livro, e depois eu ía passar por aquela situaçao do ser demasiado íntimo e não querer publicar. Esses textos, essa poesia, escrevo-os mais para começar o meu dia, normalmente escrevo-os de manhã. Os livros são uma obra em que invisto, quero que tenham princípio meio e fim, que transmitam uma mensagem a muitas pessoas. É um objectivo diferente. Para já, acho que o meu futuro passa por um livro infantil, que tenha ilustrações minhas também. É um projecto muito arrojado, porque é muito difícil escrever um livro infantil. Os miúdos são os principais críticos e não dizem que gostam sem gostar, é um público mais exigente. Mas é um projecto que gostava de concretizar mais para a frente. Quando acabar este livro talvez volte a usar o “meu” menino autista.


Parte I
Parte II

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